Em cinco de outubro de 1988 foram concluídos os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte e foi promulgada a nossa Constituição Federal, vigente até hoje. Chamada por Ulysses Guimarães de “o documento da liberdade, da dignidade, da democracia e da justiça social”, a CF/88 é marco inquestionável de uma nova fase da história do Brasil.
Desde então, tem havido uma grande convergência intelectual, um enorme esforço dos acadêmicos brasileiros para compreender o impacto deste documento no Brasil contemporâneo. Várias áreas das ciências humanas, por meio de diversas abordagens, vêm privilegiando estudos onde a nossa Constituição e o Supremo Tribunal Federal encontram centralidade.
Várias são as instituições e atores sociais que, no seu dia a dia, dão vida e existência concreta à nossa Constituição. Neste contexto, surgiu a ideia de contribuir de forma inovadora para este tão profícuo e importante debate: a aplicação do método-fonte-técnica da História Oral ao Supremo, nestes primeiros vinte e cinco anos de vigência da Constituição.
Seguindo sua tradicional missão institucional de contribuir para o conhecimento e o aprimoramento das instituições democráticas e republicanas do Brasil, a Fundação Getulio Vargas decidiu mobilizar esforços no sentido da construção de uma inédita base de dados qualitativos sobre o Supremo, composta por entrevistas realizadas com aqueles que compuseram a corte entre 1988 e 2013.
Para tanto, uniram-se as suas duas escolas de Direito, do Rio de Janeiro e de São Paulo, e a Escola de Ciências Sociais/CPDOC (Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil). Ambas as escolas de Direito da FGV, mesmo com apenas pouco mais de dez anos de atividade, já se firmaram no ensino jurídico nacional como instituições propulsoras de um pensamento arrojado, inovador, multidisciplinar, e conectado com os desafios da atualidade. E em um olhar sobre o Brasil. Já o CPDOC traz quase quarenta anos de expertise em pesquisas em História Oral, uma vez que atua nesta frente de trabalho desde 1975.
Joaquim Falcão - Diretor da FGV Direito Rio
Oscar Vilhena Vieira - Diretor da FGV Direito SP
Celso Castro - Diretor do FGV/CPDOC
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Esta pesquisa pretende trazer às comemorações dos 25 anos da Constituição Federal um novo discurso científico sobre a Suprema Corte brasileira: sua história oral. Numa empreitada da FGV Direito Rio, em conjunto com a Direito GV e o CPDOC, se pretende reconstruir e reinterpretar a história recente do STF a partir de entrevistas com os magistrados que a compuseram nestes últimos 25 anos, com recurso ao método-fonte-técnica da História Oral. A perspectiva dos atores que compuseram a corte e a maneira como eles reinterpretam fatos à luz de experiências vividas, permitirão a construção de uma narrativa sobre os aspectos sociais e políticos da história recente do Supremo. Nos contando a história da sua relação com a instituição, nos contarão a história da instituição.
Sete etapas foram previstas para a realização da pesquisa: (1) um breve programa de capacitação metodológica a ser ministrado pelos pesquisadores aos assistentes de pesquisa e bolsistas de iniciação científica, (2) a coleta de dados sobre o STF no período em questão, (3) a coleta de dados específica sobre cada um dos ministros a serem entrevistados, (4) a consolidação dos dados coletados e a elaboração dos roteiros de entrevista, (5) a realização das entrevistas com os ministros, (6) o tratamento e a análise dos dados coletados, e finalmente (7) a elaboração dos produtos finais da pesquisa, dentre os quais se destaca a presente entrevista com o Ministro Aldir Passarinho.
O que efetivamente esta pesquisa visa produzir é uma história oral temática, não uma história oral tradicional, no seu sentido mais amplo. O que se pretende é a construção de uma biografia institucional do STF com o marco temporal da vigência da Constituição Federal de 1988, sendo certo que esta se consubstancia numa espécie de biografia coletiva daqueles que o integram e o integraram nesse período. O interesse é estabelecer conexões entre a trajetória dos seus ministros e ex-ministros – e não sua biografia ou sua história de vida – e a corte. Note-se a existência de uma dupla perspectiva: individual e institucional. Num primeiro momento, deve-se investigar como foram construídas trajetórias profissionais que permitiram o ingresso dos nossos colaboradores no STF. Em seguida, é preciso constatar como a experiência de ser um ministro daquela corte vai complementar suas trajetórias, marcar suas vidas.
Tornar-se parte e habitar uma instituição implica num processo longo, complexo e reflexivo. Do ponto de vista estritamente formal, podemos extrair um critério básico que distingue insiders e outsiders do STF, e que foi crucial para o recorte da população de entrevistados: existe um procedimento objetivo e racional de escolha, investidura e exercício das funções de ministro. No entanto, este critério não nos leva mais longe. É necessário ver para além dos requisitos e procedimentos legais de admissão, bem como além dos misteres funcionais dos ministros do Supremo. Cada um dos colaboradores entrevistados traz na sua trajetória um acúmulo de capital social (jurídico, político, econômico...) que sustentou seu ato de candidatura e permitiu seu ingresso efetivo na corte, bem como autorizou ou limitou seu repertório de ação enquanto Ministro da corte.
Um dos problemas de pesquisa enfrentados foi: como se relacionam a trajetória profissional e as interações e negociações que precedem a nomeação? Em outras palavras: como ocorre fina e efetivamente este processo de circulação simbólica do capital social acumulado previamente no momento de uma disputa pela nomeação? A pesquisa não supôs que seria descoberta uma “trajetória modelo”, e igualmente processos de nomeação similares. Trabalhamos com a hipótese de que existem múltiplas maneiras de acumular capital social o mais variado a ponto de alçar alguém à posição de “supremável”. Portanto, além de mapear estas trajetórias, tentando até traçar conexões e convergências entre elas, a pesquisa terá a ambição de determinar como ocorre a determinação do turning point entre construir num longo prazo uma trajetória elitária (no Direito, na política...) e construir deliberadamente um ato de candidatura ao STF.
Assim, pretende-se estabelecer, num segundo momento, como a trajetória profissional, seguida pelo plano deliberado de candidatura, vai determinar o enquadramento institucional do processo formal de negociação, indicação, sabatina e nomeação de um ministro do Supremo. O longo processo de ingresso na corte, compreendendo estas três etapas – acúmulo de capital social ao longo de uma trajetória, planejamento estratégico de um ato de candidatura e procedimento formal de investidura no cargo – podem nos fornecer chaves imprescindíveis para determinar o quadro interacional e institucional dentro do qual cada ministro se encontrava ao ingressar na corte, e qual sua força compromissória na continuidade da sua atuação.
A alçada ao estatuto de ministro do Supremo é fato que inaugura novo capítulo na trajetória de qualquer jurista. Assim, viver experiências semelhantes produz trajetórias semelhantes e assim discursos sincrônicos: uma memória coletiva da instituição. No entanto, não podemos esperar que assim ocorra, não apenas porque as experiências vividas por cada indivíduo podem conter particularidades: a maneira como eles vivem e relatam estas experiências – ainda que vivam as mesmas – pode ser diferente.
É neste ponto que se reafirma a necessidade de construir determinantes estáveis a partir de todo o processo que culminou com o efetivo ingresso na instituição. Ainda que não se consiga precisar como atua um ministro do STF, teremos parâmetros minimamente objetivos para mapear algumas continuidades acerca de repertórios de ação de um ministro do STF. No lugar dos conceitos de status e função, devemos considerar o papel que cada um deles ocupa e desempenha no seio e diante da dinâmica da instituição, e como esta objetiva suas expectativas na forma de restrições – internas ou externas – ao possível alargamento do repertório de ação individual.
Desta forma, foram escolhidos dois enfoques principais para a construção desta demonstração. Primeiramente, é necessário saber como – e se – o cotidiano do STF contribui para a internalização de práticas institucionais relativamente uniformizadoras, que se perpetuam através das gerações de ministros pela rotinização (e não inculcação). Em outras palavras: como se resolve a dicotomia entre a determinação individual autônoma de um repertório de ação e a contextualização institucional de um quadro fixo de condutas pertinentes. Em segundo lugar, numa abordagem oposta, deve ser desbastada a ampla rede de interações que acaba por construir o sentido do “extraordinário” no seio da instituição. A maneira como cada membro distingue o trabalho rotineiro do trabalho relevante e reconhece determinada tarefa como crucial, decisiva ou hierarquicamente mais importante nos fornecerá pistas para determinar como um determinado caso se transforma efetivamente num hard case, ou leading case, o que pode ser academicamente aproveitado na forma de um caso gerador, conforme proposição de Paulo Freire.
Feito isto, a pesquisa terá condições de investigar mais detidamente como se formam os consensos, as coalizões e as disputas em torno destes casos, diante da necessidade prática de se julgar em colegiado, tendo em vista ainda a eventual permissividade institucional do julgamento monocrático.
Assim, serão quatro os momentos privilegiados na trajetória de nossos entrevistados a serem explorados na composição de uma história oral do STF: sua trajetória prévia, o ingresso, o cotidiano e o hard case.
Não podemos tratar da pertença ao STF sem o uso da noção de elite. Por força de seu contexto institucional, o Supremo é muito mais do que o lugar onde se reúne a elite judiciária Brasileira. Muito embora ele seja a Corte de maior hierarquia do sistema judicial, não é – necessariamente – uma trajetória de carreira exemplar no seio do Poder Judiciário que garante o ingresso de um novo membro. A ruptura com a tradicional subida de hierarquia burocrática da justiça produz uma multiplicidade de possibilidades no que tange à reconversão dos mais variados tipos de capital social, notadamente o político e o jurídico. De igual sorte, o regime formal de administração do trabalho cotidiano afasta bastante a rotina de um magistrado de primeiro ou segundo grau da de um ministro do STF. Os primeiros se aproximam de burocratas tradicionais – funcionários públicos – enquanto no Supremo os membros se organizam de forma semelhante aos agentes políticos parlamentares. Finalmente, a brusca diferença de impacto entre as decisões proferidas pelo Supremo e as dos demais tribunais da República, per se, põe esta corte na posição de produtora dos critérios distintivos e do conteúdo do “marcante” e do “relevante” no mundo da Justiça e do Direito.
Portanto, seguem algumas questões de pesquisa que compuseram nosso esforço de coleta de dados por entrevista:
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Quais são as trajetórias que tornam alguém “supremável”?
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Quando se começa a trabalhar objetivamente para ser do STF?
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Como se passa o processo de escolha e indicação pelo Presidente?
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Como se passa a sabatina no Senado? Ela é mesmo pro forma?
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Como um ministro “novato” é recebido no Supremo?
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Como é a rotina de trabalho de um Ministro do STF?
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Como interagem e/ou competem os Ministros entre si?
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Como é o convívio com demais atores internos (assessores, funcionários...)?
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Como é o convívio com demais atores externos (advogados, políticos, imprensa...)?
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Qual foi o impacto da instituição da transmissão televisiva das sessões?
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Como um determinado caso se torna um hard case?
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Como surgem consensos na separação do trabalho “ordinário” do “relevante”?
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Quais atores externos influem na construção de um hard case (imprensa, políticos...)?
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Como se compõem coalizões e se resolvem divergências no julgamento dos hard cases?
O caráter profano do Direito enquanto pretensa área do conhecimento ou ramo da ciência vem sobretudo da sua proximidade com o exercício do poder político. A história do Direito, das profissões e das instituições jurídicas se confunde com o desenvolvimento de uma atividade que jamais conseguiu reivindicar e efetivar plenamente sua autonomia em relação à política e à razão de Estado. Não sabe até hoje se existe para regulá-la ou é por ela regulado.
Entretanto, no lugar de alimentar mais uma discussão normativa e conceitual sobre a relação entre Direito e Política, a reconversão do capital manejado no Campo Jurídico e no Campo Político por atores concretos pôde enfim ser objeto de mais uma pesquisa empírica. A partir da construção das trajetórias individuais dos ministros, da memória coletiva e da história oral do Supremo, esta pesquisa pretende contribuir profundamente para o conhecimento que possuímos acerca de nossa recente história republicana.
Nelson Jobim
Fernando Fontainha